18 agosto, 2010

absurda vida privada

Eu quero morrer! Eu quero morrer! Ela gritava, vibrando o rosto e chamando atenção dos passantes. Os dois pequenos, um com uns 9, outro duns 7, olhavam atônitos, levando sabe o quê daquilo consigo. Vocês tão loucos? Você é adulto? Quem é adulto aqui? Eram duas mulheres, de meia idade. O cabelo e as roupas contavam o tanto que haviam esquecido de si, sem dúvida um sacrifício pelos filhos. O menino mais velho era o filho, o outro, um amigo. Tinham acabado de voltar ao ponto de encontro de onde saíram sem que as duas se dessem conta. Eu nunca mais vou sair com você! Os gritos ecoavam, os dois iam diminuindo, encurralados contra a parede. Os seguranças que haviam sido acionados, se afastavam. Os passantes fingiam ignorar. As moças iam crescendo, as madeixas avermelhadas se armando, os olhos, arregalando, a voz afinando Agora você só vai sair com seu pai! um olhar descuidado veria monstros ao invés de gente Eu quero morrer!!

Numa fresta de espaço entre os gritos, a única coisa que o menino conseguiu fazer foi balbuciar em meio às lágrimas necessárias, nervosas e cheias de vergonha é que eu queria ir no banheiro...

MIJA NAS CALÇAS!!

E não há mais nada o que escrever.

04 fevereiro, 2010

Aí minha mãe leu.

Seu texto me fez lembrar de Cora Coralina.

Sempre relacionei esse texto à vó Maria.

Transcrevo-o (não tenho seu dom de escrever) com três pequenas alterações que o tornam ainda mais significativo.


Estas mãos


Olha para estas mãos
de mulher roceira,
esforçadas mãos cavouqueiras.

Pesadas, de falanges curtas,
sem trato e sem carinho.
Ossudas e grosseiras.

Mãos que jamais calçaram luvas.
Nunca para elas o brilho dos anéis.
Minha pequenina aliança.
Um dia o chamado heróico emocionante:
– Dei Ouro para o Bem de São Paulo.

Mãos que varreram e cozinharam.
Lavaram e estenderam
roupas nos varais.
Pouparam e remendaram.
Mãos domésticas e remendonas.

Íntimas da economia,
do arroz e do feijão
da sua casa.
Do tacho de cobre.
Da panela de barro.
Da acha de lenha.
Da cinza da fornalha.
Que encestavam o velho barreleiro
e faziam sabão.

Minhas mãos doceiras...
Jamais ociosas.
Fecundas, imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar, ajudar,
unir e abençoar.

Mãos de semeador afeitas
à sementeira do trabalho.
Minhas mãos raízes
procurando a terra.

Semeando sempre.
Jamais para elas
os júbilos da colheita.

Mãos tenazes e obtusas,
feridas na remoção de pedras e tropeços,
quebrando as arestas da vida.
Mãos alavancas
na escava de construções inconclusas.

Mãos pequenas e curtas de mulher
que só se preocupou com a família na vida. (
que nunca encontrou nada na vida.)
Caminheira de uma longa estrada.
Sempre a caminhar.
Com Maria a rezar, (
Sozinha a procurar,)
ao Pai do céu e a Jesus, (
o ângulo perdido) , a pedra rejeitada



Bjs, Sandra Maria

26 janeiro, 2010

Sobre mãos e despedidas

As mãos quentes e inchadas de sua avó desacordada no leito do hospital era o que mais lhe chamava a atenção (também, preferia não olhar pro rosto inanimado a respirar com a boca aberta e seca por uma máscara de ar).

Lembrou da última vez que sua vó estivera nessa situação, meses antes. Fora ela quem, mesmo ensonada, pegou a mão da neta com as suas antes de voltar a dormir e, de tempos em tempos, apertava um pouco seus dedos, respondendo aos estímulos que recebia de carinho de neta. Ficaram assim por um bom tempo.

Dessa vez ela não ia dar o primeiro passo, nem podia. Então a menina envolveu com as suas as mãos dela. Duas gerações de vida separavam aquelas mãos.

Estavam quentes e macias. Parece pele de galinha crua, pensou, solta sobre a carne. Aí pensou em quanta vida aquelas mãos, agora inertes, já não haviam tateado, amassado, apertado, acarinhado. Histórias demais por trás daquele tecido cheio de rugas, manchas e marcas.

Seu olhar se voltou, então, pra suas próprias mãos. Diferente das de sua avó, elas exibiam o frescor e altivez da juventude. Sempre tivera mãos grandes. Eram ágeis e firmes, com a pele viçosa, com a força e o vigor do corpo aparentes. Mãos com uma ânsia absurda de escrever, desenhar, amassar e carinhar novas histórias, muitas ainda por vir. Ela sempre gostou de observar suas mãos, sua aparência, os movimentos que era capaz de fazer, o desenho dos ossos e veias por sob a pele. Agora fazia ainda mais sentido.

Um olhar desapercebido daquelas mãos justapostas poderia levar a uma análise ingênua. Não se tratava de lamentar aquelas quase sem vida em detrimento das outras, tão jovens. Não. Aquilo era, sim, o retrato bonito da matéria vida.

Ela olhava praquele contraste e mergulhava numa calma aconchegante. Tudo fazia sentido.

Perdeu a noção de quanto tempo ficou ali tateando a vida de sua vó nas rugas de suas mãos. Quando achou que era hora, despediu-se. 'Vó, eu tô indo. Boa noite pra senhora. Fica bem, viu?'.

Mais tarde lembrou que esquecera de dizer que voltava no dia seguinte. Mas no dia seguinte, isso já não teve importância.