Não dorme de tanto que o pulmão reclama. Quando era com a filha era ele quem vinha preocupado olhar pela fresta da porta, ver se tava tudo bem, oferecer mel. Hoje é ela quem não dorme, preocupada, mas sem saber como oferecer ajuda.
Sensação estranha. De ser breve, de ser finita, de estar olhando pras coisas erradas, correndo demais, olhando pra ponta do dedo ao invés de olhar pra lua que o dedo aponta.
O sonho e o trabalho dele foram para construir a família perfeita. Casa bonita, comida bem feita, boas escolas, valores corretos... Tudo como manda ainda a cartilha da finada vó. Coisa estranha a vida. Saiu tudo por outro trilho, principalmente as meninas. Não ficaram na barra da saia da mãe, recitando a cartilha da vó. Foram pro mundo, pro delas, interno, sozinhas ou pro desconhecido, das gentes, das coisas, do que a vó alertava. Quanto desapontamento isso causa, fica se perguntando. Acha impossível de mensurar pelos olhos de filha.
Outra, família grande. Sinônimo de festa, de bagunça, de barulho, burburinho de gente, né? Não aqui. Sete gentes familiares morando sozinhas nos seus mundos. Faltaram as aulas da vida de como encostar no outro pra passar afeto, como dizer que ama com as cordas vocais, com o abraço, um toque no ombro. Todos juntos, separados. Será que se pode culpar alguém?
Tosse tosse tosse no quarto do lado.
De repente os anos todos de revolta, de afastamento, de afirmação ganhando o mundo perdem todo sentido, viram caprichos, erro de foco. A vida também tava e tá um tanto ali, debaixo do nariz, no quarto do lado, se esvaindo em tosse. Ela vai ouvindo e se arrependendo dos olhares gelados, de maldizer, de se afastar. Difícil dormir com o rosto molhado. A vontade era cruzar as duas portas e deitar perto do pai como quando era criança, pedindo um abraço, cuidando. Mas tudo é rancor, tudo é orgulho, tudo é meio dito e nada se resolve entre esses.
Só quer mostrar que gosta. Como aprende isso? A voz, sabe usar; mãos, braços, pernas, não têm nenhuma disfunção de movimento; as palavras, sabe quais são, já ouviu tantas vezes em filmes, na vida, já falou pra outras pessoas, de outros lugares; o que sente sabe também. Parece que o problema é só juntar tudo.
Como aprende isso antes de morrer?